Wednesday, February 28, 2007

Aqui é bom mas nao é

Nada como um paradoxo para entitular palavras sobre um Brasileiro na Europa. Extenda a descricao da localizacao para a Alemanha que os contrastes e sentimentos contraditórios se tornam ainda maiores. As diferencas entre estes dois mundos assumem tantas dimensoes que qualquer tentativa de abrange-las com palavras se torna em vao. Entretanto uma breve coletanea de algumas peculiaridades de ambos os lados saceiam o impeto de compartilhar esta experiencia. A referencia literária neste assunto é o livro do Joao Ubaldo Ribeiro, “Um brasileiro em Berlim”. Como ainda nao tive o privilégio de le-lo e residi predominantemente em Hamburgo, só me resta recomendar a leitura.

A impressao inicial é certamente visual. Aeroportos nao sao merecedores de comparacao qualquer pois estao sujeitos à regulamentacao internacional e possuem orcamento da mesma origem. Embora sejam limpos, amplos e relativamente luxuosos tanto no Brasil quanto em paises ricos, os corredores movimentados comecam a mostrar que essa terra tem um “q” que nao é tipuniquim. O abrir das portas automaticas e embarque no transporte publico inicia a montanha russa intercultural.

Uma narrativa de caracter comparativo comecando pelo trasporte publico da alemanha é até covardia. Simplesmente porque aqui as coisas funcionam e no brasil nao. A definicao de “funcionar” é sim um bom ponto de partida. Isso porque as diferencas entre Brasil e Alemanha residem nao somente na realidade mas tambem na maneira como ela é vista. Se um carioca corre para alcancar o onibus que esta fechando as portas no centro da cidade depois de um dia de trabalho, chegando em casa a tempo para ver o Jornal Nacional, ele dirá que tudo funcionou bem. Um alemao diria de antemao “Geht’s nicht”, ou seja, nao dá. Aqui nao basta conseguir fazer as coisas, pois é preciso saber como elas acontecerao com antecedencia.

Depois de um jantar na casa de amigos, ao colocar o casaco para se despedir voce poderá ser surpreendido com a pergunta: “Voce nao vai olhar na internet?”. Voce pensa: “Como assim? O que?”. Isso porque sistema de trasporte aqui é todo interligado e voce sabe exatamente a hora e conexao de qualquer trexo. Se o tal jantar terminou as tres horas da manha e o site disser que às 03:13 vai passar um onibus no ponto da esquina, pode estar certo que ele vai estar lá com uma margem de 30 segundos de erro. Experimente esperar um onibus no Rio às tres da manha. Se voce sobreviver até o dia raiar terá a sorte de pegar a linha que leva os trabalhadores do primeiro turno.

Pontualidade e planejamento é algo caracteristico do povo alemao e motivo de conhecidos esteriótipos. Mas uma placa de aviso na quadra de tenis dizendo como o saibro deve ser varrido em circulos concentricos pelos jogadoes depois do jogo me impressionou. Aí residem os sentimentos contraditorios sobre Brasil e a Alemanha. Os caras tem regra para tudo, o que pode levar um brasileiro mais relaxado à loucura. Mas por outro lado sao as mesmas regras que nos permitem admirar como as coisas funcionam bem e o fato da gente nao precisa de carro para voltar de jantares na casa dos amigos que moram longe.

Tal excelencia e precisao dos alemaes podem até ser encontrados em outros paises da europa. Por outro lado as dimensoes sao unicas. Se voce tem as pernas um pouco maiores que a média ou precisa abrir os botoes da calca depois de um churrasco, voce vai adorar a Alemanha. Os bancos e corredores dos trens aqui sao agradavelmente grandes. Especialistas em ergonomia certamente iniciariam aqui uma discussao sobre a estatura media da populacao alema enquanto um abusado diria logo que os alemaes sao iguais aos donos de pickup’s querendo compensar o tamanho de alguma coisa. Eu me abstenho dessa prosa. Quando voce volta de uma viagem da espanha ou da franca voce sente que voltou “para casa” já na estacao central, a “Hauptbahnhof” (leia-se raupt-ban-rof).

Na verdade me pergunto agora porque tentei explicar como se pronuncia “Hauptbanhof”, pois é um esforco em vao. As tradicionais diferencas linguisticas sempre mereceram e ainda merecem livros por si só, mas esse ponto ressaltado por uma amiga vale a pena ser abordado. Brasileiro nao consegue falar consoantes mudas. Ninguem é “Vip” por lá, sao todos “Vipi’s”. Ninguem come no Pizza Hut e sim no “Pizza Hutty”. Apesar de isso dar uma conotacao mais carilhosa para as palavras quando pronunciadas em ingles, o motivo real é que nao temos muitas palavras deste genero na lingua portuguesa. Assim, nao me surpreenderia se me pegasse falando “haupitibanihofi”.

Bem, falar sobre o meu alemao é pedir para pra ser motivo de piada. A pergunta, repertorio de todas ligacoes para o brasil, é sempre “e o alemao, como vai?”. A resposta é algo como “Esta se referindo ao Matthias ou ao Bernd?”. A ironia esta embasada na minha preguica de aprender a lingua deste pais uma vez que quase todos falam ingues. Quando preciso fazer uma média dou a desculpa que 2 mestrados em 2 anos nao dao tempo pra mais nada. Complemento dizendo que as aulas foram todas em ingles. Quando o amigo é mais indiscreto ele sempre emenda com o comentario “Po, mas dois anos aí e nada???”. Outro fato interessante que diz muito sobre as duas culturas é resposta para a pergunta “Voce fala ingles?”. Se o brasileiro ja aprendeu a falar “the book is on the table” mesmo sem saber o “th”, ele vai responder sim. A resposta do alemao é invariavelmente “ein bissen” ou “a little bit” (um pouco). Quando voce conversa com o cara constata que ele tem um ingles perfeito. A extensao desta diferenca é tao importante que atinge o mundo dos negocios. Enquanto o diretor brasileiro é garantido pelo gerente que metas irreais de producao serao cumpridas, o alemao tem que sacudir o seu subordinado para conseguir projecoes com menos margem de seguranca. O precavido iniciaria aqui um debate dizendo que o alemao é mais confiavel enquanto o malandro diria que o alemao tem o famoso “coeficiente de cagaco”. Mais uma vez me abstenho.

O que posso fazer é lembrar das situacoes inusitadas que meu precario conhecimento desta lingua me proporciona, ou seja, quando nao entendo nada. O classico comportamento é uma estratégia antiga para quem tem pensamento sudoeste. Para os desinformados o “sudoeste” acontece com pessoas com dificuldade de atencao. Voce esta falando com a pessoa e simplesmente vem um pensamento completamente diferente colocando a sua mente em outro lugar, enquanto seus olhos e cabeca continuam fingindo que esta acompanhando a conversa. No final a pessoa te pergunta “Sacou?”, e voce responde com aquele “aham” meio enrolado. A melhor estrategia nesses casos é sorrir e fingir que esta tudo bem. Isso sempre acontece quando estou no onibus sentado de frente para uma velhinha alema e ela comeca a tagarelar para mim. Elas devem falar algo sobre o tempo ou sobre as compras que carrego, sei la. O que eu queria mesmo é poder ver de fora meu sorriso simpatico que evita o desgosto da senhora.

Nao sao só as velhinhas que sao vitimas do meu alemao. No meu segundo ano de Oktoberfest em Munique cheguei cedo para conseguir um lugar para sentar e com isso pedir cerveja. Um amigo dormiu ate tarde e me ligou para saber onde estavamos. No meio daquela barulheira respondi “No pavilhao da Löwenbräu”. Segundo depoimento posterior ele teve que esclarecer melhor isso, pois entendeu que eu tava na “Loving Boy”, um nome de estabelecimento estranhissimo para alguem estar com a namorada. Na verdade eu sou a a maior vitima disso e provavelmente vou aproveitar meu ultimo ano por aqui pra resolver este problema. E as velhinhas coitadas? Sao vitimas mesmo é da idade.

Velhice é mais uma diferenca por deficao entre Brasil e Alemanha. Velho no brasil esta entre 50 e a morte, enquanto na alemanha essa definicao tem que ser estendida para os 70 ou depois. Do contrario ia ficar dificil nao dizer que aqui so tem velho. Geógrafos adoram se esbaldar com graficos de natalidade e distribuicao etária, mas a conclusao prática é que aqui tem velho pra cacete. O motivo? Aqui eles nao morrem. Quero dizer, sao duros na queda. Literalmente! Nao foram poucos os relatos de amigos brasileiros que viram idosos cairem mortos na rua. Se nao acreditam em mim facam uma visita em um supermercado alemao. As velhinhas nao tem mais o que fazer e pegam seus andadores e vao para o supermercado. Voce jura que aquele ser beirando o centenario nao pode estar vivo e fazendo compras. Uma professora de artes ressaltou este assunto quanto discutiamos sobre os avancos na ciencia e onde esta sociedade vai parar. A reflexao de ate que ponto vale a pena prolongar a vida é algo certamente mais profundo do que o escopo desta analise, mas certamente cabe mais às mesas de bar alemas do que às brasileiras. Afinal os velhos por aí estao mais preocupados em saber se a aposentadoria vai dar pra comprar os remedios até o final do mes.

Falando em assunto profundo, chegamos ao topico predileto deste mesmo amigo da “Loving Boy”. Inconformado, ele sempre reclama que aqui “tudo tem que ter um sentido”. Como um bom brasileiro que vem para alemanha buscando o sonho das alemas peitudas com uma caneca de cerveja em cada mao, ele se decepcionou ao constatar que a coisa nao é bem assim. No brasil o conceito de “ficar” se tornou algo tao normal que a constatacao de que isso raramente existe fora da terra brasilis surpreende. A interacao homem-mulher puramente carnal, visando unicamente a diversao, nao acontece por aqui. Isso quer dizer que um simples beijo nestas bandas esta atrelado a palavra relacionamento, que so perde para o termo casamento na hora de assutar um solteiro convicto. Tal sujeito reproduziria cenas de desenho animado, quando a personagen dispara tao rapido que as roupas ficam, se ouvisse uma voz infantil falando “papai”.

Este assunto é complexo e esbarra no problema das generalizacoes. Quem nunca ouviu falar de um brasileiro que se deu bem na primeira noite com uma mulher americana ou europeia? A explicacao que encontrei depois de inumeros debates com amigos de todo o mundo esta no superego. A mulher brasileira herdou a hipocrisia do catolicismo e mede seu atos pelo o que os outros vao falar. Assim, vale tudo menos sexo na primeira noite. Aí é aquele carvanal. Ja no resto do mundo as mulheres nao estao tao preocupadas com o que os outros pensam. A mulher alema é capaz de dancar de forma sensualissima mas na hora de beijar elas separam o joio do trigo. Beijo aqui esta atrelado a relacionamento. Imagine a revolta dos gerreiros tupiniquins, de cara pintada e arma na mao, ao ver aquela boate cheia de beldades sem um beijo sequer. Por outro lado a alema pode um dia sair de casa “querendo” e buscar um cara para uma noite de sexo e nada mais. Um amigo australiano foi expulso da casa de uma mulher com a qual tinha passado a noite, assim que eles acordaram. Cada país tem suas peculiaridades e definir qual tem o verdadeiro Carpe Diem fica a cargo de voces.

Assuntos da carne à parte, a afirmacao de que “aqui tudo tem que ter um sentido” tem implicacoes mais amplas. Afinal, estamos comparando um pais que acabou de comemorar seus quinhentos anos com uma civilizacao que vem sendo transformada desde a antiguidade. A diferenca de nível cutural é notória. Nao almejo de forma alguma debater qual elite cultural é mas avancada. Me limito a constatar que o cidadao comum alemao é muito mais culto do que o brasileiro. Entre num trem na alemanha e conte somente o numero de pessoas que estao lendo livros. O acesso é cultura por aqui por sua vez é mais facil. Muitos museus sao gratuitos e apresentacoes possuem discontos extremos para estudantes. Sem falar no indice de alfabetizacao e sararios dos professores. Entretanto quantos brasileiros voce conhece que frequentaram otimas escolas e universidades e hoje raramente leem? O tempo que demorei para ler “A Divina Comedia” me coloca em posicao suspeita. Talvez o brasileiro nao leia pois esteja preocupado demais com o pagamento sufocado das contas no fim do mes. Ou talvez esteja mais interessado em aproveitar o clima e natureza privilegiada que sua terra lhe da.

A natureza é certamente motivo de saudosismo entre brasileiros no exterior. Como nao sentir falta das lindas praias, montanhas e tudo mas que torna o país esta terra maravilhosa e tao admirada? Ja o clima pode se tornar motivo de debate dependendo da origem e preferencias pessoais do expatriado. A relacao com o inverno é a mais conturbada. Geralmente uma mistura de amor e odio. Quando os primeiros flocos de neve caem e tudo fica branquinho é impossivel para um brasileiro que vem do caldeirao húmido do Rio de Janeiro nao se encantar. Tal encanto pode perdurar ou nao, de acordo com a extensao da estacao e das dificuldades que a neve traz com ela. Cada um tem suas proprias queixas e a minha predileta é contra a brita com sal na rua para derreter a neve. Nao tem sapato com solado de couro que aguente ao desgaste desta maldicao. Quem nao gosta de vestir casacos tambem reclama. Os alemaes tem uma expressao que diz que nao existe mau tempo, e sim pessoal mal vestidas. Quando o frio ta leve isso aí ate cola, mas quando o tempo estar de raxar e voce esta levando chuva ou neve na cara dá vontade de esganar o cara que criou este dito. Sem falar da minha inconformacao quando estava chuviscando e um amigo alemao do trabalho cismou que nao estava chovendo. “Isso nao é chuva”, alegou ele. Eu respondi que, de onde venho, quando agua cai das nuvens chamamos de chuva.

Há brasileiros que idolatram o eterno verao do Brasil. Ok, voce pode dizer que no brasil tem duas estacoes: a chuvosa e a seca. Ou a quente e a menos quente. Mas eu particularmente sou um fa das quatro estacoes. Isso porque, podem me chamar de louco, gosto de problemas. Sem eles a vida fica sem graca e nada como um inverno para fazer voce aproveitar cada minuto do verao. A primavera e o outono de verdade sao tao poéticos que minha limitacao literaria vai deixar que voces se lembrem de suas viagens nestas epocas ou de filmes que viram.

Nada como o filme “Jamaica abaixo de zero” para exemplificar de maneira humorada a adaptacao de seres humanos provindos dos trópicos ao gelido inverno. O contraste depende obviamente de seu estado de origem. Acostumado com a sauna carioca, virei fa de carteirinha das ciroulas. O nome “ciroula” tem tom meio engracado e esquisito. Talvez seja impressao minha. Me quiser soar cool, diga “long john”. Independente da expressao que voce utilizar, saiba que voce se sentira ridiculo quando se olhar no espelho e usar tanto a blusa quanto a calca de baixo. Um magricela como eu era quando cheguei fica parecendo um frango depenado. Cheguei a usar minhas ciroulas até com temperaturas amenas de 15 graus. Pouco me importava com as piadas dos amigos, pois quando saia na rua me sentia como um canguru no marsupio. O problema sao as situacoes causadas pela falta de experiencia. Imagine o contraste de sentimentos quando voce sai com ciroula por baixo e o programa acaba indo parar numa boate. Meu amor às ciroulas se transformou temporariamente em ódio por algumas vezes. Numa delas quase fui ao banheiro do estabelecimento retira-las de tao suadas que estavam minhas pernas.

Agora comida é outro assunto. Tudo que o clima do brasil nos priva da beleza e charme das quatro estacoes ele retribui com abundancia gastronomica. É a vidada de mesa da covardia ressaltada no transporte, cultura, e clima. Comer bem é algo fundamental. Ao menos para mim. Por sorte tenho metabolismo acelerado que da inveja nos que tentam manter o peso. Paradoxalmente ganhei quinze quilos em dois anos de alemanha. Dificil apontar o motivo exato desta contradicao pois multiplos fatores podem ter influido, incluindo difrentes rotinas, quantidade de exercicios, mudancas no metabolismo e obviamente a alimentacao. Se tem uma coisa que falo mal da alemanha sem cerimonia é sobre a comida. Antes de mais nada é bom esclarecer os esteriótipos. Os alemaes nao vivem de salsicha. Eles comem mais frango do que qualquer outra carne. O que realmente predomina nas mesas por aqui é a batata. Detalhes a parte, o brasil oferece muito mais e muito melhor. Viajantes de longa data e largos bolsos podem argumentar que existem restaurantes de altíssimo nivel por aqui. Garanto , entretanto, que o custo relativo é certamente maior sem falar da menor disponibilidade de produtos frescos.

Uma vantagem da escacez alimentar é o aprendizado na cozinha. Quantos de voces sabem cozinhar arroz, feijao, pao de queijo e outras coisas simples que temos no dia a dia no Brasil? Acredito que tirando as donas de casa sem empregada, poucos responderao sim para os tres items mencionados. Muitos, como eu, sempre tiveram o prazer de cozinhar mas quando o faziam algo, era mais exotico como comida japonesa ou um prato frances sofisticado. Devo confessar que depois que voce aprende essa euforia vai embora e a saudade da empregada bate. Se a empregada tambem se encarregava da faxina a saudade se torna maior. Se ela ainda por cima era a que passava as camisas sociais, desculpem meus entes queridos mas é ela a pessoa que mais sinto falta. Tenho que ser sincero, fazer o que?

Um depoimento sobre a alemanha nao poderia deixar de desmistificar a falsa impressao de que o povo alemao é frio. Dependendo da camada, o brasileiro é mais frio camaras criogenicas quando comparados ao alemao. Explico. Um estudo sobre diferencas culturais compara o brasileiro a um pessego e o alemao a um coco. Enfatizo a ausencia de acento, evitando protestos futuros. Tal modelo descreve que nós brasileiros temos uma camada externa macia, propiciando contato e integracao imediatos. Pense no carnaval o exemplo esta dado. Entretando quando o relacionamento comeca a se aprofundar encontramos um caroco duro e dificil de transpor. Quantos amigos de verdade voce tem? Os alemaes, por outro lado, se comportam de maneira oposta. Ao dirigi-los a palavra voce encontrará imediatamente uma casca dura, formal e direta. Uma pergunta de como uma mulher esta se vestido pode respondida com algo do tipo “com esta roupa voce fica gorda, feia e o arco de cabelo realca as espinhas da sua testa; consigo ver suas estrias e varizes; ponha uma meia”. Embora o exemplo seja extremo, sinceridade é algo certamente notável por aqui. Um aspecto interessante desta caracteristica alema é que o ouvinte, por sua vez, espera uma resposta sincera e dificilmente ficará magoado. Geralmente a resposta dura e objetiva é até preferida. Uma vez que tal rigidez inicial é trasposta, encontramos um miolo doce e macio. Quando o alemao se dirige a voce usando “du”, em geral quer dizer que voces ja atingiram certa intimidade e certamente voce podera contar com tal pessoa para o que der e vier.

O exemplo da “Loving boy” nos remete diretamente a outro grande choque cultural entre as duas nacoes. Homofobismo é algo que está tao enraizado na cultura brasileira que ficamos chocados quando refletimos sobre ela e nossos valores. Saí com uns amigos para tomar uma cerveja e em seguida partimos para encontrar uma alema com quem eu estava saindo. Ela levou uma amiga e sugeri que elas escolhecem o bar. Quando chegamos na porta nos deparamos com uma enorme bandeira do arco-iris. Eu e meus amigos travamos na porta igual a jegue defronte à mata-burro. Nao preciso me prolongar na descricao da revolta das duas com olhos inconformados, comparaveis somente com nossa revolta ao vermos filmes sobre o Apartheid. Depois de algumas cervejas numa pizzaria proxima voltamos ao assunto e expliquei que nao tenho nada contra gays, embora nas esteja acostumado a frequentar o mesmo ambiente que eles. Elas rebateram dizendo que isso acontecia à decadas atras por aqui, mas a sociedade evoluiu ao longo destes anos. Esta noite foi o ponto de partida para a constatacao do atraso da mentalidade nao so brasileira como de muitas outras sociedades. Nunca tinha notado que apesar de nao querer mal algum para homosexuais, cresci em um meio onde “fala viado” e “sua bicha” sao expressoes depreciativas normais e amplamente utilizadas. Depois de um tempo voce acaba ficando menos chocado quando ve casais do mesmo sexo livremente pelas ruas e quando uma amiga relata que esta impressionada porque todas suas amigas estao virando lesbicas. Se voce pensou “uhm ele ta amolecendo...ta virando boiola”, recomendo uma analise critica do filme Beleza Americana. Embora viver aqui ajude a abrir sua mente e deixar de se comportar como um neandertal, devo confessar que minhas raizes no pais da hipocrisia ainda impedem a encarar este fenomeno com absoluta normalidade.

Se voce ficou surpreso em saber que o alemao é mais caloroso que o brasileiro, e que ele encara homosexualismo com naturalidade, se segure na cadeira para essa entao: a alemanha nao é nada do que voce imagina. Pense na alemanha. Veio a imagem de algo como aquelas casinhas que tem em Blumenau, ou um rapaz alto e gorducho tomando uma cerveja e comendo salsicha? Lamento informar mas esta nao é a alemanha, mas sim a Bavária. Toda imagem que temos formada descreve somente um estado ao sul deste país. É como um alemao pensar que todo brasileiro toma chimarrao e fala “tche”. Na verdade é pior pois a alemanha é um pais peculiar. Por motivos historicos existe uma grande diversidade cultural e até mesmo etnica por aqui. A unificacao do país se deu de forma tardia e reuniu grupos completamente diferentes. O contraste é tanto a ponto da lingua ser totalmente diferente. Nao estou me referindo a diferenca de sotaque, como a que existe entre o nordestino e o gaucho, mas sim a praticamente uma lingua distinta. Se voce aprende alemao do Norte, nao pense que vai entender uma frase sequer na bavária. Sem falar nos dialetos como o Platdeutsch, que nem mesmo os alemaes entendem. Uma distincao clara é que o norte é predominantemente protestante enquanto o sul é católico. As diferencas sao tao grandes que a rivalidade é maior que as richa entre cariocas e gauchos somada à do gaucho com o catarinense.

O modelo do pessego e do coco exemplifica perfeitamente as duas culturas. O alemao é certamente um coco. Sem acento. Mas quando se trata de prestacao de servicos o acento é mais que bem vindo, é mandatorio. A combinacao da referida rigidez inicial com as generosas leis trabalhistas, torna a grande maioria dos atendentes desta terra comparáveis a funcionario publico brasileiro preso no trabalho na segunda do meio de feriado. Simpatia e prestatividade em pessoa. A fila do supermercado é uma experiencia única. Os funcionarios ganham por ítem registrados na caixa. Isso significa que a gentíl funcionaria ira empilhar os items no balcao quer voce tenha sido habil ou nao para colocar os items na sacola. Um novato certamente se encontra-rá assustado com a expressao de poucos amigos, nao só da caixa como de todos na fila, quando sua agilidade for qualquer coisa diferente de frenética.

Em meio às diferencas entre o norte e o sul da alemanha cabe ressaltar uma caracteristica comum: paixao pelas feiras. Me refiro a feira a qual minha avó descreveria como quermesse. Uma mistura de parque de diversoes com festa junina. Brinquedos, barraquinhas e muita comida. Entre outras coisas voce irá sempre encontrará grelhados, champignon na mantega e muita batata. O curioso é o fato de nao ser como festa junina que tem uma época definida e comidas caracterisricas. Seja na feira de natal, na comemoracao da primavera ou verao, lá estao os alemaos comendo grelhados, champignon e batata. Outra garantia é que se estiver sol vai ter churrasco. Como aqui dia de sol é dá para contar nos dedos das maos e dos pés, isto significa que quando o tempo esta bom é fumaca pra todo lado. Mas nao pense que é bagunca. Aqui cada um leva sua propria carne e bebida. Um sistema democratico e justo mas que desconhece as vantagens da economia de escala. Tal sistema tem suas vantagens quando voce vai ao restaurante. A garconete sempre pergunta “junto ou separado?” e cobra um por um com a maior paciencia quando a segunda opcao é escolhida.

Esta paixao pelos churrascos faz parte do que chamo da sindrome do jacaré. Quando o sol aparece ficam todos com os corpos rosados extendidos em qualquer pedaco de grama que voce avistar. Nestas horas voce percebe que a cultura do culto ao corpo ainda nao chegou aqui. Enquanto no Rio as coitadas das gordinhas tem que se esconder na piscina de casa ou se dirigir para a praia deserta mais proxima, aqui eles mostram os quilinhos a mais sem menor pudor. A pressao social de que todos tem que ser lindos, sarados e bronzeados nao sufoca os alemaes. Entre malhar para manter o corpo em forma e se matar pra parecer modelos de revista, fico com a filosofia alema. E voce? Se martiriza por um defeitinho aqui ou ali ou curte o corpo que seus pais lhe deram?

Em assuntos do corpo lhes dou uma dica: consulte-se com todos os medicos antes de vir para a alemanha. Poparei-os dos detalhes de de uma historia real tragica que aconteceu com um amigo vietnamita. Cito somente o fato dele ter passado meses sem um diagnostico correto, sendo transferido para um hospital para doencas tropicais. Quando ele voltou para seu pais foi diagnosticado com leucemia e infelizmenta ja nao esta entre nós. Casos extremos à parte, uma conclusao geral pode ser tomada: o medico comum alemao é ruim. Certamente pode-se argumentar que estudantes nao tem acesso a medicos de primeira linha, mas qualquer medico brasileiro se da pelo menos ao trabalho de examinar o paciente. Nao espere uma simples análise visual se chegar com a garganta inflamada no médico. Neste caso ou voce sera mandado para casa sob alegacao de que tem uma simples gripe, ou será solicitado um exame de sangue. Voce pode estar se perguntando “mas e se eu estiver me sentindo muito mal e o laboratorio demorar semanas para dar o resultado?”. Nao pense em ir para o hospital, pois sera mandado de volta para o mesmo medico que nem olhou sua garganta. Os exemplos sao inumeros mas acredito que a tragédia descrita seja o suficiente para voces seguirem minha dica.

A verdade é que trabalhando na alemanha voce se pergunta como este pais pode ser tao rico. No brasil voce pode ate dizer que o Rio de Janeiro faliu porque o carioca quer mesmo é saber de praia. Mas os caras aqui nao estao falidos e o conceito de “ralar” no trabalho é praticamente inexistente. Encontrei um brasileiro no supermercado que depoz dizendo que recebeu um projeto em uma grande empresa planejado para oito meses. O sujeito disse que terminou em tres e passa o resto do tempo navegando pela internet. O work’aholic paulista ja está pensando “porque ele nao pediu mais pra fazer o filme e quem sabe ser promovido?”. Em um ambiente em que todos estao a 10km/h, acelerar pode ser a pior estrategia para manter seu emprego. Aqui nao existe “pra ontem”. Quando as coisas apertam voce fica desesperado. Taí o motivo de todo planejamento. O alemao faz tudo de forma extremamente lenta, mas faz direito. O brasileiro? voce ja sabe... O problema da alemanha é que o pais nao é uma ilha e quando se trata de um mundo dinamico e globalizado flexibilidade é fundamental.

O balanco final da experiencia de dois anos na alemanha nao poderia ser diferente: Aqui é bom mais nao é. A adaptacao completa e definitiva é algo raro entre os inumeros extrangeiros que conheci aqui. Com tantas diferencas é dificil, mesmo para um brasileiro que tem um “q” alemao, dizer que se sente em casa. Por outro lado é certamente mais facil a adaptacao do brasileiro na alemanha do que a situacao contraria. O motivo á simples: seguranca. No brasil, independente da classe social, estamos sempre sobrevivendo. Na alemanha as pessoas vivem. Tal definicao assume dois espectros da qualidade de vida: estabilidade financeira e seguranca. Ler um jornal brasileiro pela internet é sempre uma experiencia incomoda, uma vez que as manchetes sempre incluem pobreza e violencia em larga escala. Nao recomendaria a mudanca definitiva de um alemao para o brasil. Já para a grande maioria dos brasileiros que vive no sufoco a mudanca poder ser para melhor. Me sinto privilegiado pela experiencia extraordinária de ter vivido por aqui e mais ainda por poder voltar com perspectivas favoráveis, que poucos no Brasil tem. Me lembrem disso quando eu estiver por aí e me cobrem uma atitude para ajudar a mudar esta realidade.

Acredito que estas nao tao breves palavras ajudam a descrever ao menos parte da indescritivel experiencia de um brasileiro vivendo na alemanha. Espero que os que estao do outro lado de lá do oceano tenham se surpreendido com algumas das reais diferencas entre os dois paises. Talvez tenha sido tambem interessante para os que estao do lado de cá, se identificando com as constatacoes e situacoes similares que vivenciaram. Se com isso tudo voce que está no Brasil ficou motivado para vir, ou voce que esta na Alemanha pensou em voltar, desejo boa sorte com a passagem. Mas isso é assunto para outra hora...

Andre Barreto